"Ágape" chegou agitada ao Parque do Sabiá e a sensação de estar com um nó na garganta e ter a mente tumultuada a fez correr sem nem ao menos sentir a trajetória ou qualquer cansaço físico. Rapidamente ela deu inicio ao percurso após adentrar no portão principal, uma vez que saíra da casa de sua avó, e já estava quase terminando o trajeto quando verificou "Mateus" correndo logo a sua frente. Tendo de apressar o passo e ser mais ligeira ela conseguiu alcançá-lo e teve sorte dele também ter adentrado por aquele portão. Era incrível tal pequena coincidência que novamente se repetia. Uma vez que ambos estavam correndo, apenas sorriram ao se verem e prosseguiram sem parar e sem gastar o fôlego com qualquer conversa. Ao chegarem perto do portão, "Mateus" apressou-se para dizer:
___ Vamos até o carro que eu tenho uma surpresa para você, só não sei se vai gostar. Sinceramente acho que não e estou me sentindo um tolo precipitado por...
___ Vou gostar de qualquer coisa vinda de você, pode ter certeza – interrompeu "Ágape" querendo retribuir a boa-vontade de "Mateus" em tentar agradá-la, mesmo que ele estivesse se autojulgando como um tolo precipitado.
"Mateus" sorriu como se uma brisa de alegria orvalhasse sobre seu rosto. Ao chegarem no carro, ele abriu a porta e retirou uma embalagem entregando-a nas mãos de "Ágape" que, curiosa, imaginou imediatamente se tratar de algo de comer. Degustando o que parecia um pedaço de bolo bastante fofo tratou de comentar:
____ Apesar de ser amargo é gostoso. É com casca de limão? Foi você quem fez?
____ Foi sim e você acertou. É um bolo de casca de limão com almeirão.
Os olhos de "Ágape" brilharam como se não acreditasse no que estava escutando.
____ Já comi almeirão refogado com farinha de milho, mas em bolo é a primeira vez. Amei! – sorriu ela abertamente enquanto pegava outro pedaço.
____ Ficou mais amargo do que o normal porque coloquei pouco açúcar. Costumo fazer pro rumo e nunca me baseio em medidas exatas.
____ Você é o máximo! Nunca imaginei comer um bolo exótico tão amargo e gostoso! – disse "Ágape" estendendo seu sorriso novamente até a ponta da orelha.
____ E aí, como foi seu dia hoje? – perguntou "Mateus".
____ Eu estou precisando mesmo me abrir com alguém e gostaria muito que esse alguém fosse você – disse "Ágape" sentindo-se incrivelmente à vontade com "Mateus".
____ Eu estou aqui pronto para lhe escutar e ajudar-te no que for possível – adiantou-se "Mateus" em ser prestativo e solidário. – Vou abrir a porta de lá.
"Mateus" abriu a outra porta do carro e ambos adentraram abrindo as janelas do veículo para ventilar um pouco. Depois de observar o interior do moderno carro, "Ágape" tampou a embalagem vazia do bolo e colocou-a no colo. Suspirando fundo e encostando a cabeça na poltrona alta, "Ágape" fechou os olhos como que para ganhar forças a fim de iniciar seu relato. Segundos depois ela olhou para "Mateus" e apreciando a mágica de conseguir se abrir verbalmente com alguém, transformou em palavras os sentimentos que lhe apertavam o peito:
____ Primeiramente passei o dia, até por volta das quatro horas da tarde, carregando as coisas da cozinha. Carregamos mais uma mesa para baixo e mamãe pediu para o inquilino do fundo fazer o favor de levar o fogão e o botijão de gás. Nisso a segunda família que vira a casa superior apareceu novamente para ver o imóvel e fechar o acordo com a imobiliária. Mamãe acabou vendendo uma mesa de vidro para eles, já que ela não caberia em baixo. Um frízer, uma televisão e uma estante ainda estão sem destino certo, pois realmente não teremos onde colocar tudo. Enfim, a mudança está praticamente quase concluída, mas o que me abalou hoje foi outra coisa. Já eram quase cinco horas da tarde quando minha irmã chegou com meu cunhado e minha sobrinha adotiva chamada “Wenda Hilar”. Eu estava bastante apreensiva por esse encontro. A primeira vista fiquei chocada, pois a pequenina de dois anos e meio estava toda machucada por ter sofrido maus tratos. Além disso apresentou-se arisca em conseqüência do sofrimento que já vivenciou em tão pouca idade. Ela é morena seminegra e tem o cabelo característico, ou seja, estilo afro. É uma criança bonita e gordinha, mas aparentemente cheia de medo. Parece até que passou pela perícia após denuncia de abuso sexual. “Wenda Hilar” estava sofrendo maus tratos dos pais e passou por várias famílias provisórias, inclusive vizinhos próximos. Ela veio a ter um lar enquanto minha irmã finalmente ganhou uma filha. Até então eu não sabia o que pensar da situação e portanto meus sentimentos estavam completamente neutros. De certa forma minha vida vai continuar sendo a mesma já que minha irmã mora lá em São Paulo. Só que, por mais que eu tente formular algum pensamento sobre essa situação, sinto minha cabeça confusa. Muito sonhei com o momento de ser tia e sempre fui super favorável à idéia de adoção, mas agora que tudo me aconteceu, não consigo sentir mais nada do que um nó imenso na minha garganta e uma vontade esquisita de chorar. No fundo eu amo as pessoas, mas sou incapaz de expressar meus sentimentos e cativá-las. Isso me faz lembrar do verso de William Shakeaspeare que diz: "Só porque alguém não te ama como você quer, não significa que não te ame com tudo o que pode". Tenho medo de "Wenda Hilar" ser apenas mais uma pessoa para me criticar, me julgar e me desprezar. Amo crianças, mas me dói não conseguir nem ao menos dizer oi para uma. Sempre tive muita necessidade de tentar fazer algum tipo de caridade e lembro constantemente quando fui ajudar de voluntária numa creche de um centro espírita que fica perto da minha casa. Foi a pior tentativa de minha vida. Minha timidez parece ser uma camisa de força que me trava por completo. Eu não consigo ter reação por mais que as queria ter, entende como? Daí as “tias” da creche ficavam sem graça de me passar atividades mais práticas como dar banho, trocar fraldas ou dar o lanche e me deixava livre para brincar com as crianças, mas isso era exatamente o que eu não conseguia fazer, pois necessariamente precisava abrir a boca para falar. Insisti durante muito tempo mesmo sabendo que eu não estava ajudando em nada, até que um belo dia uma menina com o característico jeito arteiro, espontâneo e inocente de criança me perguntou se eu era muda. Fiquei tão mal e acuada que nunca mais voltei. Continuei praticando outros tipos de caridade, mas sempre com tremenda dificuldade por questão da timidez. Mas o que quero dizer, sem sair do assunto, é que amo crianças e tenho uma incrível vontade de brincar com elas por sentir que ainda sou uma completa criançola, mas não tenho o mínimo jeito nem para me aproximar de uma. Enfim, é isso, me sinto feliz, mas também completamente confusa e estranha. Minha irmã chegou apenas com tempo de colocar as malas no carro e passar na casa de vovó. De lá ela foi embora e então vim para cá enquanto mamãe ficou na casa de vovó a me esperar. Sei que aos poucos vou me acostumar com a desejosa e bizarra situação de ser tia. Espero inclusive de futuro conseguir ter um mínimo de intimidade que me possibilite ter liberdade de expressão para com "Wenda Hilar". É horrível a sensação tão forte que tenho de só me sentir bem quando estou sozinha. Nunca tive alvedrio e intimidade para ser eu mesma com ninguém além de mamãe e muito me espanta estar tendo agora contigo. Às vezes penso que você é apenas um sonho de minha mente, ou quem sabe uma esperança do meu coração. Não sei ao certo quem é você, mas o que sinto quando estou contigo é mais especial do que a possibilidade de qualquer palavra poder explicar – finalizou "Ágape" sentindo que seria impossível continuar uma vez que as lágrimas já desciam por suas faces.
"Mateus" que a tudo escutava atentamente calado, passou a mão pela nuca de "Ágape" e puxou-lhe para perto de si. Fechando os olhos "Ágape" apreciou o leve perfume de "Mateus" enquanto sentia-se imensamente aliviada e reconfortada. Sua vontade de chorar fez-se intensa naquele momento e como se quisesse livrar-se dela, ignorou o espaço entre um banco e outro do carro que os separavam e abraçou-se a "Mateus" numa expressão de carência e paixão. Quando fez venha de voltar para a posição inicial, constatou que os olhos de "Mateus" estavam levemente úmidos e sentindo seus lábios tão próximos não conseguiram segurar um beijo suave e ardente ao mesmo tempo. Para ambos o mundo houvera desaparecido em fração de segundos e nada mais podia ser sentido do que o disparar do próprio coração. Realmente era como se tudo fosse apenas um sonho miraculoso e desse devaneio "Ágape" não queria acordar tão cedo. Dando inicio a um envolvimento amoroso que ambos não conseguiam mais renunciar, "Mateus" e "Ágape" sorriram levemente constrangidos e não tardaram em trocar outros beijos calorosos. Pouco depois se despediram e negando outra carona "Ágape" retornou para a casa de sua avó. “Mariposa” preocupada com alguns alugueis e distraída com a situação da adoção de "Wenda Hilar", ainda teve tempo para demonstrar a falta que estava sentindo da companhia de "Ágape" durante as noites. E de resto, para terminar o dia com mais tranqüilidade, "Ágape" iniciou a novena que lhe fora indicada para Nossa Senhora da Guia. De uma coisa ela tinha absoluta certeza: encontrar-se a sós com sua mãe novamente em sua moradia era, naquele momento, um lenitivo sem tamanho.
Atualização
Há 4 anos
Nenhum comentário:
Postar um comentário