“Sonhei que eu esperava uma amiga, pois íamos sair juntas para dançar. Estudei na vida real com essa amiga durante vários anos e ela (era a 'Ami'), pelo que eu saiba, sempre foi crente e deve continuar sendo. Ela estava demorando e senti-me insegura pensando se ela teria desistido, se teria ido sozinha, se estava tentando me despistar por algum motivo ou o que acontecera. Eu estava na casa dela, mas no quarto de hospedes. Enquanto aguardava, eu joguei sobre mim mesma uma comida feita, como se fosse uma espécie de ritual. Não recordo direito, mas parece que tinha arroz, feijão e quiabo. Quando resolvi ir atrás dela, vi que sua mãe ia na mesma direção e preocupada pensei que a mesma não poderia ver aquela sujeira de comida que eu fizera no quarto. Voltei correndo para onde estava, deitei na cama e fiquei em silêncio para fingir que dormia. Ambas começaram a discutir muito alto. A mãe dela acusou-a de ter perdido o juízo depois de deixar a religião tradicional de berço e de família por outra que permitia a pessoa sair a qualquer hora da noite. A tal religião dela é daquelas que não permite a mulher usar calças (apenas saia), não usar roupa decotada, não usar esmalte, não pintar o cabelo (de preferência não cortá-lo também), não beber nada alcoólico, não fumar, não comer carne, não fazer absolutamente nada no sábado (a não ser rezar ou ler a bíblia), não ir a cinema, boates, etc. A discussão estava em torno do fato dela querer sair (parece que íamos fazer isso escondido da mãe dela) e também sobre sua troca de religião. Fiquei com muito medo da mãe dela vir tirar satisfações comigo ou dela própria ficar com raiva de mim por eu não ter ido lá defendê-la ou por eu ter influenciado-a de mudar seus padrões de comportamentos e de crenças. Fiquei acuada, atônita, sentindo uma ponta de culpa e ao mesmo tempo de raiva. De um lado estava a mãe cheia de limitações por pudores religiosos, do outro a filha querendo quebrar os vínculos que a prendiam em tais limitações sórdidas e, nesse meio, estava eu escondida me refugiando num meio-termo com medo de ambas virem descontar suas irritações sobre mim. Acordei assustada tentando entender o que tal sonho queria dizer sobre mim mesma. Existe algum conflito interior dentro de mim com relação ao sagrado e ao profano? Como lidar com isso se for o caso?”
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Disse-lhe para iniciarmos a análise pelo insólito: “Enquanto aguardava, eu joguei sobre mim mesma uma comida feita, como se fosse uma espécie de ritual.” Alguém poderia pensar em núcleo potencial pré-psicótico. Claro que não pensei nessa possibilidade, pois não iria tão longe. O cenário mobiliza em “Alra” a insegurança, associada à máscara que funciona como refúgio na atitude de defesa como vítima, abandono, medo à rejeição e inferioridade. O que se segue é reativo e natural, podendo ser associado ao padrão com o qual sempre respondeu a essas ameaças em sua vida, ou seja, fazendo do pensamento ritualístico a tentativa de se defender dos fantasmas interiores e que ao longo do desenvolvimento a favoreceu e ajudou-a evitando que sucumbisse à sensação de pânico pelo abandono. Já vimos em leituras passadas a repetição do padrão, desta forma de responder às ameaças: o pensamento mágico. É nele que “Alra” se refugia e é desta forma que encontra suporte para não sucumbir à tempestade emocional que a invade. Possivelmente sua tendência na criação e produção de fantasias e ilusões tenha nascido neste padrão de defesa de sua estrutura psíquica e emocional. Mas com o tempo, este mecanismo que havia favorecido a sobrevivência, passou a representar uma armadilha impedindo-a de estabelecer-se com o meio, com as pessoas, com as relações sociais mais próximas, aprisionando-a no casulo de que busca escapar. Neste aspecto a sequência do sonho é preciosa, pois mostra a força do embate entre a vontade de voar e o medo de ser punida ao se libertar.
Fica evidente sua dificuldade em lidar com figura de autoridade. Há recuo, regressão, acionamento de defesas, repressão, inflição, punição e o baixo nível de auto estima. É possível que haja conflito. São duas tendências: como jovem, naturalmente é atraída para a vida mundana ou profana, mas enquanto adulta, o caminho interior chama para a religiosidade e para a renúncia. Disse-lhe que um bom modo de libertação surge após a saciação das pulsões internas, mesmo sabendo dos ricos que corremos de ficar aprisionado nas compulsões e paixões mobilizadas pelo prazer. Quando nos amordaçamos, a fantasia do não vivido pode se mostrar como o pior carrasco. Esse possível conflito aparece entre a atração pelo prazer e a moralidade religiosa repressora, em síntese, entre o prazer e o sacrifício. Observei sua fala: “... e, nesse meio, estava eu escondida me refugiando num meio-termo com medo de ambas virem descontar suas irritações sobre mim.” Qualquer semelhança não é mera coincidência. “Alra” realmente está escondidinha entre esses dois mundos. Disse-lhe que o mais importante e significativo não é o conflito, pois esse é o embate entre dois lados, duas possibilidades, duas manifestações, duas escolhas possíveis, dois universos de polaridades opostas, de repulsão e atração, ou seja, supernatural, impossível de inexistir ou ser desfeito! O importante e mais significante é a postura, a atitude, a resposta diante do fato, a conduta, a ação, o movimento. A atitude do frágil nasce no medo, que nasce na defesa, que está ligada ao instinto de sobrevivência. Defesas são fundamentais, pois sem elas sucumbimos. Defesas baseadas em neuroses é que são impeditivas e bloqueadoras na interação com o meio. Se o sujeito se apavora com uma formiga ele sucumbirá em cenários que lhe exijam mais.
Portanto, disse-lhe que é necessário crescer, encarar os desafios, seus próprios monstros, seus fantasmas e algozes. É preciso abandonar a pequena criança amedrontada que mora no medo, e crescer com dignidade, desenvolver o respeito pelos outros e por si mesma, fortalecer sua coragem e olhar de frente para os que a ameaçam. “Alra” recebe a recomendação de seu sonho para desenvolver atitudes e posturas referendadas no direito tanto quanto nos deveres, na igualdade, para assim não sucumbir aos medos que destroem e aniquilam a alma. Antes de ter que aprender a lidar com seus desejos, “Alra” teria que aprender a lidar com a força da repressão que auto-aprisionava-a. Mas junto a isso ela tinha um detalhe favorável: é mais fácil aumentar os limites do reprimido do que fazer recuar os limites do pervertido. Ela precisava ser como uma borboleta, arriscar seu voo, se lançar e mergulhar no espaço vazio para descobrir o prazer de voar, de viver e ser feliz.
COLABORAÇÃO ESPECIAL: M. EDUARDO
APOIO: A_LINGUAGEM_DOS_SONHOS
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