Assim que levantou da cama “Alra” relatou-me seus sonhos: “Tenho algumas recordações superficiais. Primeiro eu estava chegando com minha mãe num apartamento enorme que houvera acabado de ser pré-decorado. Minha mãe disse que antes de terminarem o serviço não aceitavam visitantes, mas eu adiantei-me para pedir ao funcionário que lá estava e ele deixou-nos entrar para ver o apartamento. Parece que era o primeiro andar. Tudo era muito amplos e cada cômodo possuía dois ambientes, um mais sofisticado e outro mais usual. Entretanto, num deles minha mãe já não era ela, mas sim um homem que perguntou se naquele cômodo (era uma espécie de sala escritório) não daria para inverterem os ambientes, ou seja, trocarem a mobília de lugar. Achei estranha a pergunta, pois não tínhamos interesse de comprar um apartamento daqueles. Nisso olhei para o exterior. O prédio fora construído num local que possuía uma antiga mansão, a qual fora demolida, mas ainda se podia ver a piscina velha de azulejos azuis não desmanchada. Pensei que talvez eles fossem apenas reformá-la ou deixar aquela mesma, mas isso seria muito descabível. Ver um apartamento novo tão bem decorado com uma piscina velha e feia fez-me ter uma má impressão dos responsáveis daquele projeto. Em segundo, eu estava com o mesmo homem do sonho da noite anterior. Ele tinha um jeito levemente afeminado que me agradava e surpreendi-me quando ele acariciou-me e foi levemente tentando aproximar-se até que me tomou de carinhosos beijos. Conforme o envolvimento foi aumentando, tentei desvencilhar-me e ele desconfiou (ou lembrou) que eu estava menstruada. Respeitosamente ele entendeu a situação e continuamos apenas com os beijos.
Em terceiro eu estava numa piscina que mais parecia um rio, pois era rústica e o interior era recoberto de pedras (haviam outras piscinas de fibra de vidro no local) e havia uma mulher com um papagaio. Fiquei admirada do bicho não se afogar. Minha mãe estava fora da piscina e segurava um cachorrinho de pelúcia da minha sobrinha. Ela comentou que ia ficar com aquele e depois daria vários para minha sobrinha. Era como se o objeto tivesse um valor muito maior do que qualquer outro. Não entendi o apego dela com aquele brinquedo. No quarto sonho eu estava numa espécie de velório. Um mendigo bebum havia acidentalmente morrido queimado e ninguém tivera coragem de o socorrer. Eu estava consultando uma espécie de oráculo com sementes bem pequenas de urucum, conchas, pedras e também havia uma garrafinha com um líquido vermelho (igual aquelas garrafas com molho de pimenta). Eu não via nada naquilo, mas conforme contava o número de sementes entre a posição das pedras e conchas, ia recebendo inspirações a respeito da alma do morto. Não lembro direito, mas creio que era isso o que eu estava tentando verificar. Haviam várias pessoas no local. Eu não era a única consulente mística que havia ali, mas era a única que estava com o oráculo aberto efetuando uma consulta. O que essas quatro recordações significam?”
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Sobre a primeira recordação disse-lhe que casa nova simboliza renovação, novas formas de se divertir, de viver, novos instrumentos e espaços. Uma renovação chama outras, ou exige que outras sejam realizadas. Caso contrário, renovamos o conceito, mas mantemos a mesma conduta, a mesma postura, o mesmo tipo de atitude diante da realidade. O novo exige uma nova repaginação. Casa nova, cabeça nova, novas formas de ver o mundo, novos conceitos, novas atitudes e novas respostas, ou seja, tudo novo, pois a vida é uma contante renovação, mesmo que isso nos passe desapercebidamente. A casa, o apartamento, a morada, diz respeito a nós, ao nosso corpo, nossa vida, nossa forma de postarmos no mundo, como um projeto arquitetônico. Deus cria e nós decoramos, eliminamos o lixo, os excessos, escolhemos a disposição dos móveis, acrescentamos os objetos e os conteúdos que espelham nosso prazer, o cuidado, a proteção, o estilo pessoal, a nossa marca. A sociedade de massa é complexa e tende a nivelar pelo mediano. O individuo tem chances iguais diante do mundo, informações básicas, conhecimento, vida padronizada, sofre percalços como qualquer outro mortal, encontra as mesmas dificuldades, corre os mesmos riscos. Estamos no mesmo mundo, vivendo a mesma vida e diferenciados apenas por cenários, fantasias, posses que facilitam certas realidades, etc.
Apesar disto o mundo moderno permite ao mortal comum uma distinção magistral: somos uma unidade única e se quisermos podemos nos diferenciar além da media geral, criar um estilo pessoal, romper com o padrão e o comum, o mediano. Ao escutar o relato de tal sonho lembrei-me de Ludwig, Rei da Baviera, o qual construiu castelos belíssimos a partir de conceitos que espelhavam sua forma de ver a vida. A elite tinha essa possibilidade de realizar o idealizado. Hoje, guardados os limites, cada vez mais, o anônimo pode ter este prazer de materializar sua criação, provando que constrói sua maior riqueza, sua individualidade. Isso é o primordial. Hoje se pode ter acesso ao que é essencial para construir a nossa casa, a vida pessoal. Hoje podemos nos construir melhores, diferenciados, plenos, realizados, independente de ter ou não grandes posses ou de exibi-las. O sonho pareceu-me dizer isto. No lugar de uma antiga mansão, construiu-se a morada moderna, mas a piscina ainda é velha, manteve-se uma linha do passado, o padrão. O empreendedor pode estar economizando, sendo pão duro, ou tendo pouca visão na aplicação de seus recursos por economia ou falta de visão. É preciso transformar o velho, renovar, renascer com o frescor do novo ou apenas parar de repetir o passado. O processo da renovação foi iniciado, mas não plenamente completado, ou seja, a necessidade da transformação continua.
A segunda recordação demonstra que, em geral, sonhos com nuances sexuais ou eróticos compensam necessidades biológicas e afetivas. Atualizam essas descompensações e enviam sinais de mobilizações predispondo o organismo a esse tipo de envolvimento e de vivência. Não se pode esquecer que, independente de qualquer necessidade emocional ou afetiva, o corpo possui suas necessidades programadas, enquanto matéria física, máquina bioquímica, preparada para a tarefa de procriação do individuo maduro, com necessidades que regularizam suas funções. Pareceu-me que neste sonho fica evidente um mecanismo, já avaliado em sonhos anteriores, que determina os eventos oníricos. É necessário lembrarmos que o sonho ocorre numa dinâmica pré-estabelecida. Há uma proposição na sua construção, mas isso não impede que a Lei da Imprevisibilidade também atue no universo onírico. O individuo como um agente, pode não interferir no sonho por sua condição passiva ou não conseguir interferir por imobilidade ou incapacidade, e o sonho será menos imprevisível considerando a intenção de sua pré construção, ou menos interferências ocorrerão no projeto de intenção do sonho construído. Mas quando o sujeito é mobilizado em seus bloqueios e em suas defesas severamente construídas, por conceitos morais, princípios religiosos, dificuldades pessoais, limites predeterminados a partir de sua relação como ser simbólico, constituído de natureza animal, suas respostas podem alterar a dinâmica dos sonhos. O que quis dizer com isso é que existe uma lei de simultaneidade entre a natureza do corpo e nossa natureza simbólica. Quando interferimos mais do que deveríamos, o corpo reage promovendo ação semelhante e interferindo na dinâmica de condução corpo, retirando do individuo prerrogativas na sua condução e impondo-lhe a submissão às necessidades corporais.
No sonho fica aparente que a repressão é significativa, e altera a dinâmica do sonho porque, a realidade do cenário funcionando como estímulo, promove uma resposta a partir da polaridade que é capaz de induzir em “Alra”. Esse fenômeno ocorre no sonho com o limite predefinido decorrente do incômodo causado pelo conflito entre o desejo do envolvimento e sua indisposição de envolvimento em decorrência da condição menstrual. Há outro lado instigante: é a natureza feminina do masculino, a condição do homem feminino, e o limite da condição feminina da sonhadora, de sua natureza. O limite, a justificativa do não envolvimento, baseada na condição de sua natureza feminina interpõe-se e funciona como bloqueio para paralisar a entrega. É possível que o exercício do controle ocorra pela fragilidade do desejo, ou pela força do desejo de permanecer apenas nas preliminares, sem envolvimento mais profundo. O limite pode estar relacionado à condição juvenil que se impõe ao envolvimento, ou à necessidade de se envolver sem se comprometer (defesas), impedindo a mulher madura de assumir o controle, àquela que precisa estar pronta para pagar e assumir seus desejos, a qual não encontra espaço frente a princesinha que não suporta o sangue da menstruação, do sacrifício. Aqui considerei o simbolismo da situação. No sonho o limite pareceu-me ir além do estado menstrual: existem conceito, ou preconceitos, que impede sua maturação como mulher adulta, ou o impedimento a favorece manter-se juvenil, retardando seu crescimento como mulher.
Do terceiro sonho a regra parece simples: papagaio que aprende “avoar” sabe boiar. Quem aprende a nadar, corre menos risco de se afogar. Quem aprende a navegar nesta realidade tem mais chances de se dar bem. É uma questão de ampliar o repertório ou as possibilidades de responder mais adequadamente à imprevisibilidade da vida. Diferentemente do papagaio que não se afoga, a resposta da “mãe” aparece como oportunista e sem ética, ou seja, ela não aprendeu a nadar. Neste aspecto, mesmo que o oportunista aprenda a se dar bem tirando pirulito da boca de crianças, ele se mostra descompromissado com valores morais e princípios básicos de ética. Pessoas comprometidas apenas com seus interesses pessoais sempre pagam pelos erros acumulados, mesmo que atônitos se lamentem: Mas por que isso acontece comigo? O apego, a posse e a competição leva a isso. “Alra” assiste ao oportunismo. Essa criança dita no sonho como dona do brinquedo é o lado ingênuo que “Alra” subestima em si mesma deixando validar a parte mãe controladora que ainda a domina com seus modos egoicos.
O quarto sonho é “Alra” diante da morte. Representa a morte de algum conteúdo pessoal. No sonho há identidade entre sonhador e conteúdo (sonho): um indivíduo entregue ao vício, abandonado, sem socorro e “Alra” rejeitada, abandonada e entregue ao vício da carência afetiva. Mas se esse é o individuo que está morto, este pode ser um pouco desse lado que morre, que se transforma para renascer de outra forma. Sementes são símbolos das forças latentes, não manifestas, é esperança da renovação que tem seu potencial de transformação. É o princípio que, associado à terra e à água fecundante, se ativa iniciando a renovação da árvore da vida. A garrafinha é o instrumental da engenhosidade humana que acondiciona o tempero da vida; o urucum colore com a cor viva; e as conchas representam a vida marinha, o conteúdo do oceano primordial. “Alra” se vê diante do oráculo e isso sinaliza mediação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Seu crescimento e amadurecimento indica essa possibilidade de destino como mediadora entre ambos os mundos. Ela assume a posição de quem consegue decodificar sinais e mensagens entre as diferentes dimensões para guiar e orientar a pessoas na travessia da vida. Pode ser este o seu destino quando avançar na sua maturação.
COLABORAÇÃO ESPECIAL: M. EDUARDO
APOIO: A_LINGUAGEM_DOS_SONHOS
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